José Pastore e Marcel Solimeo1
(Artigo publicado também no site Migalhas)
Resumo: Este artigo aponta o rápido abandono das estratégias conflitivas dos grupos
identitários ligados à onda “woke”. O artigo relata inúmeras mudanças que vêm ocorrendo
nos países mais avançados e também no Brasil no campo do “wokerismo”.
O desmonte do “wokerismo”
É impressionante a velocidade com que as empresas vêm desmontando as chamadas
políticas de inclusão do chamado “wokerismo”. 2 Está ficando claro que, muitas delas
apoiaram esse movimento não por convicção, mas, com o propósito de conquistar a
simpatia do maior número possível de consumidores. 3 O importante era dar a publicidade
de estarem promovendo mulheres, negros, idosos, gays e outros grupos que, sem dúvida,
merecem toda consideração. Na verdade, essas empresas queriam evitar o
“cancelamento” ou “lacração” dos consumidores que alimentam os valores do
“wokerismo” – uma subcultura que insiste em considerar todas as diferenças como
resultantes da ação deliberada de “opressores” sobre “oprimidos”. Para tanto, foram
inventados um sem-número de termos para estigmatizar os considerados opressores –
machismo tóxico, dívida histórica, lugar de fala, etarismo, negacionismo, gordofobia, etc.
Está evidente que o objetivo fundamental daquelas empresas era o de agradar o grande
público, – e não a verdadeira promoção dos grupos vulneráveis. Em muitas delas os
profissionais de RH recebiam ordens superiores para contratar mulher ou negro “o mais
urgente possível” como estavam fazendo os concorrentes que vinham sendo
contemplados com belas notícias pela grande imprensa”. 4
Que fique bem claro o posicionamento dos autores deste ensaio. Em um país de tantas desigualdades, é imperioso que se implementem medidas que atenuem o sofrimento dos
grupos mais frágeis, mas, sem que sejam retaliações aos demais grupos. Esse é o
propósito das políticas públicas como, por exemplo, o Bolsa Família, Benefício de
Prestação Continuada; as proteções dos Estatutos da Igualdade Racial, da Criança e do
Adolescente, da Pessoa com Deficiência, do Idoso e vários diplomas legais que formam a
rede de proteção social do país aos quais damos todo apoio. Entretando, temos sérias
reservas em relação aos grupos formados por pessoas que se sentem ungidas se
autodefinem como “oprimidas” e rotulam as demais como “opressoras” e responsáveis
pelos seus problemas. Com isso, estabelece-se um ambiente de agressões e conflitos
com forte repercussão na sociedade. Isso porque o identitarismo da subcultura “woke”
dedica maior fidelidade aos seus valores do que os da sociedade onde atuam. O
exagerado sentimento de pertencimento se torna exclusivo, eliminando o espaço aos
demais grupos. Ao fazer suas reivindicações, o “wokerismo” ataca os demais grupos e
busca afirmar a sua superioridade. Nesse contexto, é comum a crítica ao capitalismo, o
que marca uma nova modalidade de luta de classes. 5
O ambiente conflitivo do “wokerismo”
O ambiente de “nós” (os oprimidos ungidos) 6 e “eles” (os opressores deliberados) gera
situações que vão da inibição da liberdade de expressão ao medo e à apreensão. Por
exemplo, para muitos grupos identitários, os homens cisgêneros 7 “ocupam um espaço
na sociedade que foi legitimado por uma estrutura patriarcal e hegemônica, sem se dar
conta que as pessoas trans, travestis e não-binárias, não dispõem desse respaldo e, por
isso, são questionadas diariamente sobre sua opção sexual”. 8
Em decorrência dessa visão, os grupos identitários entram em processos de
confrontação, atribuindo aos demais grupos a responsabilidade por práticas desumanas
de décadas ou séculos atrás. Embates desse tipo provocam polarizações que são
potencializadas pela força das redes sociais. Com isso, a conflituosidade cresce e torna
mais difícil a implementação de medidas que resolvam os problemas dentro de um clima
de entendimento, compressão e respeito mútuo.
É claro que no Brasil existem racismo e sexismo. O mesmo ocorre em relação a obesos, idosos, portadores de deficiência e outros grupos. Mas, nada justifica atribuir às pessoas
em geral o estigma de discriminadoras. A insistência do “wokerismo” em generalizar a
culpa aprofunda divisões, corrói a liberdade de expressão e as bases do entendimento
entre as pessoas.
É o que ocorre, por exemplo, quando os grupos “oprimidos” demandam que os grupos
“opressores” assumam a responsabilidade por reparações morais e econômicas por
fatos ocorridos no passado remoto. Vejam o caso da demarcação das terras indígenas
no Brasil. Os militantes do “wokerismo” pleiteiam que os atuais proprietários de terras
(rurais e urbanas) reconheçam a sua usurpação e devolvam as mesmas aos herdeiros
dos povos originários.
Ao buscar culpas em toda parte, o “wokerismo” passa da inclusão para a exclusão,
contribuindo para alastrar a insegurança e a desconfiança. 9 Em muitos casos, as
pessoas se calam para não serem “canceladas”. Isso empobrece o pensamento e a
verdadeira diversidade que se exige da democracia. 10
Uma sociedade fragmentada se torna presa fácil do autoritarismo e do populismo. 11 A
morte de muitas democracias modernas se deve não a ataques militares, mas ao
solapamento das instituições cuja função principal é a de garantir a liberdade de
expressão das pessoas. 12 Numa palavra: a agressividade do “wokerismo” agrava as
desigualdades que pretende combater e enfraquece a capacidade das sociedades para
encontrar soluções para os problemas. 13
Com frequência, o acusatório dos “opressores” empurra a sociedade para becos sem
saída. Vejam o caso do combate ao racismo. Ao se referir à dívida histórica associada à escravidão, pergunta-se: o Brasil tem de pagar uma indenização aos “credores”? Quem
são os credores? Os herdeiros? Mas, quem são eles? Qual é o valor da indenização a ser
paga? De onde viriam os recursos? Dos contribuintes?
A dívida que realmente interessa não é a histórica, mas sim a atual que inclui a
necessidade de se melhorar as condições de vida dos grupos discriminados – a saúde, a
educação, a segurança, o emprego, a renda, o transporte público, etc.
Expansão do “wokerismo”
Os movimentos identitários que alimentam o “wokerismo” se disseminaram de forma
avassaladora, atingindo vários segmentos sociais – empresas, universidades, 14 partidos
políticos, órgãos públicos e outras instituições. 15 Recentemente, por força de uma
resolução da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), as empresas que operam no Brasil
têm de incluir pelo menos uma mulher no conselho de administração e um representante
da comunidade LGBTQIA+. 16 Espera-se que isso seja feito de modo gradual e pela via
do entendimento. Mas, não será surpresa se essa decisão virar bandeira de luta dos
simpatizantes do “wokerismo”.
Nos Estados Unidos o “wokerismo” entrou até nas orquestras sinfônicas. 17 Muitas estão
sendo pressionadas a relaxar os critérios de recrutamento de músicos para acomodar
uma proporção de membros dos grupos identitários. Os maestros reagem, pois precisam
de artistas que sejam capazes de atender as exigências dos desafios musicais. Mas, a
ideologia do “wokerismo” pretende ser mais importante do que a preservação da
qualidade artística.
Em muitos casos, até o movimento em favor da ESG (Environment, Social and
Government) é propelido pelo “wokerismo”. Uma enorme profusão de consultorias
vendem às empresas programas para reduzir o preconceito e a discriminação. Alguns
empresários os adotam por convicção. Outros, buscam apenas fugir do patrulhamento
ideológico do “wokerismo”. Reagir a esse modismo, pode prejudicar a imagem das
empresas perante consumidores e opinião pública – com prejuízos econômicos.
Sinais de mudança
Mas, o mundo começa a mudar. Nos Estados Unidos a proporção dos que acham
“privilegiados” por serem brancos está caindo em todas as pesquisas. O mesmo ocorre ao
que se refere ao movimento sexista que considera machista os homens cis. E mais.
Verifica-se na mídia impressa, rádio e televisão um declínio do uso as palavras típicas do
“wokerismo” tais como opressão, privilégio branco, machismo tóxico, gordofobia,
transfobia, etc. Diminui também o número de professores universitários que vinham sendo
“cancelados” por usar palavras consideradas inapropriadas pelo “wokerismo”. Em nove
estados, foi banida a proibição do uso de termos que supostamente afetam a noção de
diversidade. Ou seja, em vários ambientes, cresce de modo acelerado um movimento de
revisão do “wokerismo”. 18
Nas empresas, essa revisão está ocorrendo entre as que constataram estar perdendo a
sua própria identidade e o seu “market-share” devido a adoção da retórica do
“wokerismo”. Por isso estão desistindo das políticas conflitivas no campo da diversidade.
Assim ocorre na Ford, Microsoft, Harley-Davidson, John Deere, Google, Meta, Facebook,
Instagram, X e outras.
O mesmo vem ocorrendo na Europa. Na França, por exemplo, inúmeros autores vêm
combatendo a nova discriminação criada pelo “wokerismo” 19 A Ministra da Cultura,
Rachida Dati, declarou recentemente que o “wokerismo” é uma política de censura e,
como tal, deve ser combatido e abandonado. 20 Béligh Nabli aponta que o “wokerismo”,
ao tentar destruir estruturas existentes, cria divisões ainda mais graves por ser
acompanhado de confrontação e conflito. 21 Michel Onfray destaca que a subcultura woke
ameaça a liberdade de pensamento e tenta impor normas sociais que não se coadunam
com a cultura da França. 22
Isso não significa que questões como raça e opção sexual foram abandonadas. Os
assuntos apenas saíram da arena conflitiva do “wokerismo” e voltaram a ser discutidos
como políticas públicas com medidas pragmáticas e sem confrontação. 23
Até mesmo as ações da ESG vem sendo questionada. Uma pesquisa realizada em 2023
pela Hoover Institution da Universidade de Stanford apontou para um ceticismo crescente
entre os investidores em relação ao retorno dos investimentos em ESG. 24
Vários sinais dessa reação já são observados no Brasil. Empresas e escolas começam a
rever a sua adesão ao “wokerismo”. 25 Uma pesquisa recente realizada pela consultoria
global GPTW (Great Place to Work) mostrou que a prioridade de diversidade nas
empresas brasileiras caiu de 37% para 18% entre 2021-22. 26 Várias empresas estão em
processo de revisão das suas políticas identitárias e algumas já abandonaram-nas. No
momento, elas demandam a não divulgação de suas decisões para não serem
abruptamente “canceladas”.
Conclusão
No momento em que o Brasil mais precisa de união da sociedade para aproveitar as
oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias e fontes alternativas de energia e
para, com isso, superar graves problemas sociais – cuja solução depende do
crescimento econômico e de uma justa distribuição da riqueza, a exacerbação de
diferenças e posturas agressivas como as do “wokerismo” dificultam a busca de um
consenso mínimo que permita a convivência de todos, sem que abram mão de suas
convicções, mas em nome de um objetivo maior.
As reações e revisões do “wokerismo” dos países mais avançados podem ser um bom
ponto de partida para se superar a atual polarização que reina no Brasil. Esse
revisionismo não significa eliminar as ações de diversidade. Ao contrário, ele busca
aumentar a eficácia dessas ações por meio de políticas públicas inteligentes e
iniciativas que ficam longe do clima conflitivo do “wokerismo”. Essa proposta visa
praticar soluções que efetivamente atenuam as desigualdades e coloquem os agentes
sociais de mãos dadas e em clima de entendimento. É a posição dos autores deste
ensaio.
Referências:
1 Professor da FEA-USP (aposentado) e Economista Chefe da Associação Comercial de São Paulo.
2 “Woke” é um termo político de origem afro-americana, refere-se a uma percepção e consciência das questões relativas à justiça social e racial. Ele deriva da expressão "stay woke" (esteja acordado) que se refere a uma consciência contínua das injustiças sociais.
3 Essa falsa adesão à diversidade foi constatada pela pesquisa da Consultoria Korn Ferry em que 85% das empresas brasileiras declararam ter acelerado suas iniciativas de diversidade, mas somente 14% acreditam que esses esforços são inefetivos. Citado em “Como a onda “anti-woke” interfere nas políticas de diversidade”, Reset-UOL, 31/07/2024.
4 Sobre critérios de seleção que premiam grupos específicos ver, por exemplo, Akira Galvão, “Elaborando Processos Seletivos Inclusivos para Pessoas LGBTQIAP+, São Paulo: Site GENERAS, 09/06/2023.
5 Várias análises dos movimentos identitários de cunho político são apesentadas por Antonio Risério, A crise da política identitária, Rio de Janeiro: Topbooks, 2022.
6 Thomas Sowell apresenta análises objetivas sobre os grupos que se consideram superiores em relação aos demais cidadãos, cuja maioria, é considerada de “opressora”. Ver Thomas Sowell, Os Ungidos, São Paulo: LVM Editora, 2022.
7 “Cis” é a pessoa que se identifica com o gênero atribuído ao nascimento.
8 Akira Galvão, “Curiosidade ou Transfobia”?, Site GENERAS, 17/05/2023.
9 Amy Chua, “How America´s identity politics went from inclusion to exclusion”, site How America's identity politics went from inclusion to division | US politics | The Guardian
10 Pedro Franco apresenta um rol de estudos empíricos que mostra o empobrecimento do pensamento e da ação no caso do sufocamento das ideias. Ver “O identitarismo e o mundo real: as implicações práticas de uma teoria”, In Antonio Risério, A crise da política indentitária, op. cit., p. 348. Ver também, Francis Fukuyama, "Against identity politics: the
new tribalism and the crisis of democracy", Foreign Affairs, vol. 97, no. 5, 2018; Marco Aurélio Nogueira, “Identitarismo como avanço e como problema”, Estadão, 27/05/2023.
11 Ver Abdul Noury e Gerard Roland, “Identity politics and populism in Europe”, Annual Review of Political Science, vol. 23, nº 3, 2020; Ronald F. Inglehart e Pippa Norris, “2016: Trump, Brexit, and the rise of populism: economic have-nots and cultural backlash”, https://www.hks.harvard.edu/publications/trump-brexit-and-rise-populism- economic-have-nots-and-cultural-backlash; Dingping Guo e Shujia Hu “Identity politics and democratic crisis in Western Europe”, Chinese Political Science Review, vol. 4, 2019.
12 Aldo Rebelo, “As muitas faces do identitarismo”, in Madeleine Lacsko, Cancelando o cancelamento: como o identitarismo da militância tabajara ameaça a democracia, São Paulo: LVM Editora, 2023. Outros textos apresentam os riscos para a própria democracia. Ver Antonio Risério, “Diversidade em alta, democracia em risco”, in Antonio Risério, A crise da política identitária, op. cit., 2022; Fernando Schuler, “Democracia, identidades e a ilusão do grande consenso”, Revista de cultura, artes e ideias, 15/03/2019.
13 Steven Levitsky e Daniel Ziblat, Como as democracias morrem, Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
14 Fernando José Coscioni, “Universidade, identitarismo e o espírito do nosso tempo”, in Antonio Risério, A crise da politica identitária, op. cit., p. 137.
15 Sobre a penetração do “wokerismo” no campo da educação, ver. James Lindsay, Race Marxism, Orlando: New Discourses Ed., 2022; James Lindsay, The marxification of education, Orlando: New Discourses, 2023.
16 Resolução 59/2021 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
17 Heather Mac Donald, When race trumps merit, Nashville: DW Books, 2023.
18 “America is become less woek”, The Economist, 19/09/2024.
19 Ver Abdul Noury e Gerard Roland, “Identity politics and populism in Europe”, Annual Review of Political Science, vol. 23, nº 3, 2020; Mitchell Dean e Daniel Zamora, Le dernier homme et la fin de la révolution, Lux, Futur proche, 2019;
Chloé Morin, “Identitarisme : ce péril qui menace notre démocratie”, L´Express, 21/06/2023; Jean-François Bayart: “L’identitarisme annule toute aspiration à l’émancipation”, L´Humanité, 16/12/ 2022.
20 “Em meio a protestos e denúncias, França vive sua própria guerra cultural”, Isto é, 07/02/2024.
21 Béligh Nabli, Le Republique identitaire, Paris: CERF, 2016.
22 Michel Onfray, “Décoloniser les provinces”, L'observatoire Eds De 2017.
23 “After peak woek, what is next?”, The Economist, 19/09/2024.
24 Gabriela del Carmen, “Diversidade nas empresas: a discussão esfriou?”, Start-UP, 21/09/2024.
25 “Diversidade e inclusão em xeque”, Estadão, 08/09/2024.
26 “Diversidade e inclusão perdem força nas prioridades das empresas”, São Paulo: CNN Business, 13/06/2022.
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