O Padre Antônio Vieira, nascido em Portugal em 1608, e que veio para o Brasil ainda criança, foi um grande orador sacro, cujos sermões se tornaram celebres não apenas pela retórica brilhante, como pelo conteúdo polêmico de muitos deles, sendo talvez o mais conhecido, o “O Sermão do Bom Ladrão”. Foi proferido na Igreja da Misericórdia em Lisboa em 1655, na presença do Rei português Dom João IV, de toda sua Corte, e dos mais importantes ministros dos Tribunais. Alguns trechos desse Sermão são muito fortes, tanto pelas denúncias como pelas cobranças, especialmente por terem sido apresentados na presença das mais altas autoridades do Reino.
Lembrando a crucificação de Cristo, cita a conduta de um dos ladrões que pediu a Jesus que se lembrasse dele no Paraiso, mas dedica a maior parte do Sermão para falar “dos ladrões que assaltam o Reino e não são punidos”.
Baseado em São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, destaca que para os ladrões, sem restituição do que foi roubado” não pode haver salvação” e que a obrigação de restituir “não só obriga aos súditos e particulares, senão também aos cetros e às coroas”.
Ressalta se referir não aos ladrões miseráveis que roubam um homem, mas àqueles que “roubam cidades e reinos, sem temor, nem perigo”, e considera que “os Reis e príncipes são obrigados a devolver o roubado se os ladrões não o fizerem”.
Por que, diz ele, são os que lhes dão “os ofícios e poderes com que roubam”. Segundo, porque os conservam neles.
Justifica que, embora o rei não possa saber a priori se um indicado irá ou não roubar, para que não seja responsável pelos roubos, deve nomear as pessoas apenas por “merecimento”, o que, no geral, segundo ele, não ocorre.
Afirma que o “que entra pela porta do “merecimento” poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são”. Destaca que, “uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação” e conclui que “quando se negocia não há mister outra prova...agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto” .
Referindo-se a um relatório apresentado por São Francisco Xavier sobre a situação na Índia, e que segundo ele ocorria nas demais colônias portuguesas, Vieira afirmou que os seus governantes conjugavam de todos os modos, tempos e pessoas o verbo “rapio” (roubar) porque “furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse “.
Em clara crítica direta aos governantes presentes, responsáveis pelas nomeações dos administradores das colônias, o Padre Vieira diz que “verdadeiramente, não sei como não reparam os príncipes em matéria de tanta importância”.
O Sermão é muito longo, mas de uma retórica brilhante e fundamentação lógica, e vale a pena ser lido por extenso. É inevitável, contudo, que ao reler seu texto não se faça um paralelo entre a situação descrita em relação à administração das colônias portuguesas, e o que se passa no Brasil nos últimos anos.
Os escândalos já conhecidos desde o “mensalão”, e os novos que vem sendo descobertos a cada momento, fazem lembrar as denúncias apresentadas por Vieira sobre a amplitude dos descalabros, o que parece ser também o caso brasileiro. Cabe destacar sua posição sobre a responsabilidade daqueles que nomeiam para cargos públicos pessoas “sem merecimento”, o que ocorreu em larga escala no passado recente e que vem se acentuando agora no “loteamento” dos cargos públicos em curso, cujos custos serão sentidos no futuro.
Também parece se aplicar a observação do autor do Sermão sobre o fato de os príncipes não repararem nas coisas erradas que estava ocorrendo em seus domínios, a exemplo do que alegam os governantes brasileiros em relação ao “mensalão” e ao petrolão”. Destaca Vieira, a responsabilidade daqueles que nomeiam pessoas “sem merecimento”, pelos resultados das ações dos nomeados. Este aspecto mereceria um artigo inteiro, mas acho que só a história poderá no futuro explicar o que ocorreu no Brasil com relação aos governantes da época.
Embora o título do Sermão se refira ao Bom Ladrão, que se arrependeu na hora da morte, ele na verdade retrata o comportamento dos que não se arrependeram.
No caso brasileiro muitos somente vieram a se “arrepender”, ao serem presos e com riscos de serem condenados a longos anos de prisão, negociaram o “Acordo de Leniência” comprometendo-se a devolver o desviado em troca à suspensão da pena de prisão a que estavam condenados. Atenderam, assim, ao que defendia o Padre Vieira em seu sermão: arrependimento, confissão e devolução do valor desviado, para obter a absolvição.
Agora, assiste-se ao “arrependimento” do arrependimento da confissão, e da promessa de devolução, sacramentado por uma decisão monocrática de um ministro do STF. Não sei como fica agora a situação. Se foram anuladas as condenações anteriores ao “Acordo”, ou não. O que se sabe é que duas dessas empresas já estão participando de licitação para as obras da Refinaria Abreu de Lima, de triste memória. Vale a pena ler e meditar sobre o sermão do Padre Vieira e o que se aplica ao Brasil. O que o Padre Antônio Vieira diria hoje?
PS: O trecho a seguir mostra a linguagem original do Padre Antônio Vieira no Sermão do Bom Ladrão;
“Levarem os reis consigo ao paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente, mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei.Mas o que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levaram consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”.
“ (…) aquele que tem obrigação de impedir que se furte, se o não impediu, fica obrigado a restituir o que se furtou. E até os príncipes que por sua culpa deixaram crescer os ladrões, são obrigados à restituição; porquanto as rendas com que os povos os servem e assistem são como estipêndios instituídos e consignados por eles, para que os príncipes os guardem e mantenham com justiça”.
Ao comentar as investidas portuguesas na Índia, fala sobre a informação de São Francisco Xavier a D. João III, quando aquele santo denunciava que naquela região, bem assim em outras;
“O que eu posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não conhecem Donato nem Despautério (a). Tanto que lá chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele, aplicam despoticamente às execuções da rapina. Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos.
Furtam pelo modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas. Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na ganância. Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos.
Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e consciência. Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro, de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos. Finalmente nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse.
Em suma, o resumo de toda esta rampante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a furtar, para furtar. E quando eles têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e ricos: e elas ficam roubadas e consumidas… Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele”
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